Há muitas formas de manifestação de assédio, desde o assédio escolar, conhecido como bullying, que leva a violência física ou psicológica em atos de humilhação ou discriminação, até o assédio midiático, que se caracteriza pela intromissão ilícita na intimidade de uma personalidade, por parte da imprensa. Há também o chamado grooming, o domínio emocional, estabelecido por um adulto na relação com uma criança, com intensão de abuso sexual. Na esfera cibernética há os chamados stalking, que consiste em uma perseguição, decorrente de uma obsessão que invade a intimidade da vítima, incluindo contato insistente pelo telefone e internet, só para citar alguns exemplos, a lista é muito extensa e atinge quase todos os nichos da sociedade. No campo do trabalho, por exemplo, há o assédio moral que pode vir acompanhado, dependendo do caso, de outro tipo de assédio, o assédio sexual.
O assédio moral e sexual no ambiente de trabalho
Segundo o Ministério Público o assédio moral no trabalho consiste na exposição prolongada e repetitiva dos trabalhadores a situações humilhantes e vexatórias, já o assédio sexual, é caracterizado crime, segundo o Art. 216-A e consiste em constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício. Para a comissão de igualdade no trabalho e no emprego (CITE), mesmo que não assumido ou denunciado, o assédio, sexual ou moral, contamina o ambiente de trabalho e pode ter um efeito devastador, quer sobre as vítimas, quer sobre as próprias entidades empregadoras, públicas ou privadas, com reflexos de natureza financeira sobre o serviço nacional de saúde e sistema de segurança social. Já que para as entidades empregadoras há um aumento do absentismo, da redução abrupta de produtividade e de maiores taxas de rotatividade de pessoal, com consequências de perdas financeiras, além disso, para o sistema de segurança social significa o aumento de “baixas” psiquiátricas, pagas pelo orçamento da segurança social.
Em alguns casos, as pessoas deixam de ser capazes de se comportar normalmente, quer no trabalho, quer na sua vida quotidiana. O assédio pode provocar estresse pós-traumático, perda de autoestima, ansiedade, depressão, apatia, irritabilidade, perturbações da memória, perturbações do sono e problemas digestivos, podendo até conduzir ao suicídio.
As mulheres são as principais vítimas do assédio
Segundo pesquisa da Datafolha, do ano de 2017, uma parcela de 42% das brasileiras com 16 anos ou mais declararam já terem sido vítimas de assédio sexual. De forma geral, é mais comum o relato de assédio entre as mais escolarizadas (57%) e de renda mais alta (58% na faixa com renda mensal familiar acima de 10 salários) do que entre aquelas que estudaram até o ensino fundamental (26%). Além disso, Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) indicam que 52% das mulheres economicamente ativas já foram assediadas sexualmente.
Outra pesquisa da ActionAid – organização internacional de combate à pobreza, realizada em 2019, trouxe resultados estarrecedores comparado a outros países, segundo o levantamento elas sofrem com o assédio desde a adolescência. Por meio de entrevistas com meninos e meninas de 14 a 21 anos de quatro países pesquisados: Brasil, Quênia, Índia e Reino Unido, contatou-se que 53% das brasileiras dessa faixa etária disseram se preocupar com assédio ‘todos os dias’. O resultado é mais que o dobro do que a mesma pesquisa aferiu no Quênia (24%) e cerca de três vezes maior que na Índia (16%) e no Reino Unido (14%). No Brasil, quase 9 em cada 10 jovens testemunharam algum tipo de ofensa contra meninas nos últimos seis meses. Essa exposição ocorreu principalmente com a família (39%) e amigos (34%). Questionados onde viram, o grupo brasileiro listou redes sociais (55%), filmes ou programas de TV (43%), letras de músicas (34%), e famosos (23%). A pesquisa caracterizou assédio como “comentários indesejadas ou impertinentes ou aproximação física”. A lista inclui cantadas, assobios, beijos à força, apalpadas, pornô de vingança e comentários depreciativos feitos em público ou nas redes sociais.
As mulheres também estão mais sujeitas ao assédio em todas as carreiras, isso se deve principalmente pela cultura patriarcal ao qual elas estão inseridas, que traz como consequências a objetificação do corpo feminino, que tem origens nas desigualdades de gênero, construídas ao longo da nossa história como sociedade. A historiadora americana John Scott é uma das principais autoras a tratar da temática de como o gênero da pessoa pode interferir na vida do indivíduo, já que, para ela, há uma divisão sexual dos papéis sociais, ou seja, embora homens e mulheres tenham corpos biologicamente distintos, nascemos e somos moldados pela sociedade, alguns papéis já são impostos a meninos e meninas. No caso, menina delicada, gosta de rosinha e bonecas, para assim ser moldada a seu papel de gestora do lar, já os meninos ganham roupinhas azuis e carrinhos, aviões, foguetes para desbravar o espaço.
O assédio no Jornalismo é tema de discussão acadêmica
A jornalista e mestranda Janaina Moro, do programa PPGCOM, da USCS, Universidade Municipal de São Caetano do Sul defendeu sua dissertação sobre a temática: “O impacto do assédio sexual e da discriminação de gênero na trajetória profissional de mulheres jornalistas”. A pesquisa, de abordagem qualitativa, ouviu relatos de sete jornalistas do estado de São Paulo, que sofreram assédio, com o objetivo de investigar a percepção dessas profissionais sobre o problema, além da discriminação de gênero vivenciadas em sua trajetória profissional. A pesquisa realizada entre 2018 e 2020 contou com orientação da Dra. Rebeca Guedes Nunes de Oliveira, professora interina do programa de mestrado profissional da USCS e especialista em estudos de gênero e procurava entender de que forma estratégias de enfrentamento eram identificadas e mobilizadas por mulheres jornalistas nas ocasiões de vivência do assédio sexual no trabalho.
O resultado trouxe que as jornalistas naturalizavam o assédio, além disso, as empresas, em unanimidade, não ofereciam canais próprios para as denúncias de assédio, portanto, os casos de assédio ficavam nas sutilezas do dia a dia. A maioria das vítimas assediadas utilizaram como forma de enfrentamento apenas revelar o ocorrido para um colega próximo.
Foi unanimidade entre as jornalistas o desejo da existência de um departamento próprio para tratar deste problema. Segundo o estudo, entre os impactos sofridos pelas entrevistadas estavam o sentimento de impotência, o ter de silenciar-se frente, a situações humilhantes, a fim de prezar pela manutenção do emprego.
Além disso, a pesquisa trouxe que o assédio pode vir de pessoas não vinculadas diretamente ao veículo, como leitores, fontes jornalísticas, patrocinadores dos veículos, conforme ocorrido com as entrevistadas da pesquisa. Além do assédio elas sofriam com discriminação de gênero, quando relatavam, por exemplo, desvantagem na profissão por ser mulher e não conseguir empregos em áreas nichadas e ditas masculinas, como a esportiva.
“Escolhi essa temática quando observei a militância evidenciada, principalmente no ano de 2018, através das muitas trending topics das redes sociais, sobre as hashtags: #jornalistascontraoassedio #ChegaDeAssédio, #Chegadefiufiu #Primeiroassedio, “Deixa Ela Trabalhar”, #jornalistascontraoassedio. E, ao perceber que embora a discussão ganhasse a esfera digital, no âmbito do dia a dia, o assédio continuava silenciosamente, conforme conhecimento de colegas que passavam por isso, mas não vislumbravam formas de superá-lo”, explica a pesquisadora e jornalista Janaina Moro.
Além desse estudo, outro realizado em 2018 pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) revelou que 70,4% das jornalistas respondentes disseram já terem sido alvo de abordagens de homens durante o exercício da profissão que as deixaram desconfortáveis, além de distribuição de pautas com base em estereótipos de gênero, até o assédio sexual perpetrado por colegas e superiores.
“Precisamos de mais pesquisas nessa área envolvendo o combate e o descortinamento de um problema tão sério que é naturalizado e impacta em questões de igualdade de direitos ao exercício pleno das atividades laborais”, finaliza a autora do estudo.
A pesquisa, com base nos relatos das jornalistas acerca da vivência do assédio, propôs orientações para o enfrentamento da problemática no âmbito das organizações no jornalismo e que se ampliam para a formação e a sociedade:
- Partir do pressuposto de que vivemos em uma sociedade fundada nas desigualdades e que as mulheres vivenciam no trabalho e nas demais esferas com as quais se relacionam socialmente, vulnerabilidades de uma estrutura social androcêntrica;
- Considerar a intersecionalidade, especialmente o recorte racial na análise dessas desigualdades;
- Desenvolver comissões ou divisões organizacionais voltadas para a abordagem do problema, para a qual devem ser reportados os casos de assédio sexual, garantindo a participação ativa das mulheres em todas as fases e instâncias;
- Dispor de espaços de escuta com sigilo e privacidade e gerenciados por mulheres, que possibilitem que as mulheres relatem o problema de maneira segura e acolhedora;
- Desenvolver produtos comunicacionais, nos diversos formatos de mídia, que sejam disponibilizadas na ambiência física e digital organizacional no sentido de dar visibilidade ao comprometimento das organizações e combater o assédio sexual, seja entre funcionários, seja por parte de fontes;
- Dar visibilidade, a partir de diversas mídias comunicacionais, à legislação em relação ao assédio sexual, tanto no trabalho, quando na legislação civil, manifestando o comprometimento da empresa em fazer cumprir as legislações vigentes;
- Oferecer canais de comunicação que permitam a denúncia sigilosa do problema, seja pela vítima, seja por terceiros, a exemplo de um disque denúncia organizacional;
- Promover e incentivar a qualificação profissional dos funcionários dos Recursos Humanos para que estejam aptos a gerenciar planos de ação e programas institucionais de prevenção e enfrentamento do assédio sexual;
- Desenvolver estratégias de educação continuada para trabalhadores e trabalhadoras, pautadas na equidade de gênero para a prevenção e o enfrentamento da violência de gênero;
- Mapear a rede local de atenção às mulheres vítimas de violência e disponibilizar informações internas sobre os equipamentos sociais disponíveis para atender as mulheres em relação a demandas decorrentes da vivência do assédio sexual ou outros tipos de violência de gênero, buscando desenvolver açções institucionais integradas em redes de apoio;
- Implementar campanhas periódicas internas e externas, assumindo enquanto organização, o comprometimento com o enfrentamento do problema;
- Promover políticas internas afirmativas, com base na perspectiva de gênero, que permitam às mulheres uma inserção mais equitativa nos cargos de liderança;
- Desenvolver estratégias disruptivas na prática jornalistas que demonstrem a capacidade das mulheres de exercerem qualquer cargo ou assumirem qualquer cobertura, independentemente de seu gênero;
- Reverificar os conteúdos e métodos de qualificação da força de trabalho, introduzindo, desde a formação acadêmica no jornalismo, conteúdos relacionados à história das mulheres no jornalismo e às práticas jornalísticas a partir no sentido de desnaturalizar concepções acerca do lugar das mulheres no jornalismo e na sociedade;
- Desenvolver estratégias educacionais emancipatórias a partir de metodologias ativas que possibilitem a problematização dessa realidade junto às academias e acadêmicos das graduações em jornalismo e nas demais modalidades de formação que compõem a área da comunicação;
- Incentivar o desenvolvimento de pesquisas e eventos no campo da comunicação, que descortinem o lugar social das mulheres trabalhadoras, assim como as discriminações e o assédio no sentido de dar visibilidade e fundamentar possibilidades de enfrentamento;
- Promover o intercâmbio organizacional e a divulgação de estratégias exitosas de enfrentamento do assédio sexual que possam servir de base para replicação em outros cenários.
- Promover espaço coletivos de reflexão entre os funcionários, para que todas e todos reconheçam-se enquanto sujeitos corresponsáveis para a construção de um jornalismo mais justo, igualitário e desvinculado de estereótipos de gênero que engendram a violência e a discriminação;